domingo, 9 de novembro de 2014

Relembrar, relembrar

Da Gaveta*
 

Se algum dia voltar a viver no Brasil, vou sentir muita falta da mudança bem definida das estações e do ritmo que isso dá para minha vida. É delicioso ver as primeiras folhas brotando nos galhos pelados das árvores, que acordam na primavera. Sentir o prazer de ver as primeiras flores saírem da terra no quintal e descobrir que nem todas morreram no inverno. É ótimo poder sair sem casaco pesado no verão, admirar as luzes e o colorido do outono e me recolher no inverno. Deslumbrar-me na neve. O melhor é saber que tudo vai acabar e começar de novo, numa cadência reconfortante.  

Quem já morou aqui, ou veio passear na Inglaterra em novembro, sabe que quando as árvores perdem suas folhas, flores vermelhas de papel se materializam nas roupas. Os brochinhos são encontrados em milhares de pontos de venda. Praticamente toda loja tem um display. Os apresentadores de tevê, os políticos, caixas de supermercado, todo mundo entra nessa moda instantânea que todo novembro toma conta das ruas. Quase que dá vontade de usar um também, só para não me sentir com roupa de praia em dia de Oscar.  


Um dos muitos pontos de vendas

 

As papoulas fazem parte de uma campanha de caridade para arrecadar fundos para a Legião Britânica Real (Royal British Legion), para os heróis de guerra. Dá para imaginar o Brasil inteiro se mobilizando uma vez por ano para dar dinheiro para soldado? Dei uma olhada no http://www.poppy.org.uk/   e descobri que no ano de 2013, eles recolheram quase 35 milhões de libras em donativos. Isso dá por volta de 140 milhões de reais. Em 2014, a expectativa de arrecadação é de 42 milhões de libras.  

E aí chega a semana de relembrar. No décimo primeiro dia, do décimo primeiro mês, na décima primeira hora, o país faz um minuto de silêncio. Bem no coração de Londres, perto de onde moram a rainha e o primeiro ministro, tem um monumento, o Cenotaph. O nome vem do grego e significa túmulo do soldado desconhecido, embora o túmulo oficial do soldado desconhecido esteja em outro lugar também no centro. Vai entender...  
 
Quando o Big Ben bate as onze badaladas e o silêncio se veste de reverência, a rainha cumpre seu dever mais uma vez. Com expressão de respeito e contrição no rosto, ela segue o soturno ritual. Carrega nas mãos uma coroa de papoulas de papel vermelho, que deposita aos pés do monumento em homenagem aos que lutaram e aos que não viveram para contar a história. No cortejo vão também uns velhinhos, cada vez menos, bem caidinhos, de cadeira de rodas. São os veteranos da Segunda Guerra. O último combatente britânico da Primeira Guerra morreu em 2012. A cerimônia continua com toda pompa e circunstância; duas coisas que os ingleses fazem com maestria.  



Monumento aos mortos em guerras
 

O caráter belicoso dos britânicos me intriga. É um dos meus muitos “Palácios da Pena” particulares. O Palácio da Pena é uma construção rebuscada que fica em Sintra, em Portugal. Não consigo decidir se abomino ou se adoro. No fundo acho que é culpa da minha ignorância no assunto. Esse gosto-gozo britânico por guerra me deixa confusa. Os ingleses estão sempre em guerra em algum lugar do mundo. Não passou um ano sequer do século XX em que a Inglaterra não estivesse em guerra contra um ou outro país. É inegável que as duas grandes guerras do século passado tiveram um impacto profundo no jeito de pensar e viver desse povo.

 
Meu amigo Harry e a indefectível papoula 
 

No último onze de novembro, calhou de eu estar trabalhando na escola da minha filha. Nos colégios, o dia sempre começa com uma assembleia. Primeiro a diretora falou sobre o dia do armistício, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Os alunos mais crescidinhos apresentaram uma encenação, vestidos de preto, vermelho e branco. A dança representava os soldados que tombaram, o preto. O vermelho simbolizava o sangue derramado e também as flores (daí as papoulas), que cobriam os campos onde aconteceram muitas batalhas. A paz em branco. A música funesta saía de violinos, que pequenas mãos manuseavam concentradas. Não havia nenhuma criança tossindo, se mexendo. Olhinhos colados naquele espetáculo de horrores e de introspecção. O ‘Grand Finale’ ficou a cargo de um menino de dez anos. Um toque de corneta, que a minha falta de conhecimento musical e militar não vai saber dizer como se chama, mas que a gente vê em filme, em enterro de soldado. 
 
Relembrando os mortos


Não faz muito tempo eu estava no trem, num daqueles bancos que fica de frente para outro banco. Bem na minha frente, havia um rapazinho de cabeça raspada. No colo dele, mochila militar e uma pasta cheia de material de exército que ele remexia como quem quer exibir alguma coisa. Mordi a isca e puxei assunto. Perguntei se ele era soldado. Com uma cara de semi-choro-e-petulância, ele me disse que tinha acabado de ser dispensado. Tinha um sopro do coração. Tive que me conter para não dar um abraço de parabéns no menino-soldadinho do coração partido. Queria dizer para ele que ele tinha sido muito sortudo e devia aproveitar esse presente que a vida havia lhe dado. Se eu fosse a mãe dele, teria ficado muito feliz com o cartão vermelho. Mas será que é assim que se pensa por aqui? 
 Nos anos 70 em plena Ditadura Militar, eu tinha que cantar o hino nacional debaixo de sol forte toda quarta-feira, sob o olhar pouco amistoso da diretora. Ela ameaçava, embora nunca tivesse cumprido, levar lá na frente para cantar sozinho quem não cantasse o hino. Foi naquela época que aprimorei a técnica de mexer a boca sem emitir som algum. Fico encafifada quando vejo multidões nas ruas de vilarejos ingleses recebendo, de bandeirinhas em punho, os soldados que voltam da guerra. Os vivos e os mortos. É verdade que na chamada “modern war” as baixas são muito menores. Nada comparado às perdas da Primeira e Segunda guerras. Ainda assim, do mesmo jeito que a gente vê na tevê brasileira notícias sobre arrastões, a tevê aqui mostra a foto de um soldado morto numa emboscada meio do caminho. Sempre aparece um pai ou uma mãe para ler uma declaração que, sem muita variação, diz: “estamos muito orgulhosos do nosso filho que morreu defendendo seu país; John-George-William-Philip adorava o que fazia”. Pelo olhar desconsolado do meu companheiro de metrô, eles devem mesmo gostar da testosterona da guerra. Mas os pais? Os que ficam? Palácio da Pena total na minha cabeça. 


Coroas de papoulas

Acabei de ler um livro agradável, gostoso de ler. Em português chama-se “Assando bolos em Kigali”. É sobre uma confeiteira em Ruanda que pede aos clientes que contem suas histórias, para juntos eles decidirem o formato do bolo. Tem uma passagem em que uma das personagens vai visitar uma escola onde aconteceu um massacre sangrento. Os corpos ainda estão insepultos, cobertos de cal. A personagem escreve no livro de visitantes, “Nunca mais!”, para depois refletir sobre quantas vezes, em quantas situações essa frase foi repetida e a violência das guerras não termina nunca.  

 O espírito belicoso dos britânicos me confunde, me incomoda e me faz pensar. Talvez seja mesmo necessário tocar música fúnebre e falar de mortes em massa na escola primária. 
(Novembro/ 2013)
 

* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias ‘da gaveta’ São impressões de quando eu ainda era novata no Reino da Rainha.


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