quinta-feira, 12 de março de 2015

Pamonhices

 



"Pamonhas, pamonhas, pamonhas

Pamonhas de Piracicaba[]

É o puro creme do milho verde

Venham experimentar estas delícias...” 


 


Quase toda semana a mensagem acima, gravada na década de 70, era repetida exaustivamente pelo alto-falante de um carro que cruzava minha rua em São Paulo, no fim do século passado. Junto com um cachorro que latia muito, uma mulher que falava berrando e o portão enferrujado da garagem do prédio ao lado, as pamonhas de Piracicaba faziam parte dos barulhos urbanos, que escalavam os andares e chegavam intrometidos pela janela. Era só mais um ruído que não merecia minha atenção. A minha não, mas assutou meu marido, em sua primeria visita ao Brasil. Ele não sabia uma palavra sequer em português. Na Inglaterra não tem carro com alto-falante gritando mensagens. Os ingleses são neuróticos com barulho. Tolerância zero. Aliás, até os cachorros aqui são treinados para não latir.


 
Gringo e desconfiado por natureza, ele achou que fosse alguém convocando a massa para uma manifestação popular. Talvez um novo golpe de Estado. Ele enxergava o Brasil pela primeira vez com olhos e ouvidos de estrangeiro. Afinal, todo mundo sabe que na América Latina ditadores se apropriam do poder a toda hora...
 
Anos depois, já morando na Inglaterra, vivi um dos meus milhares  momentos de gringa. O Parlamento Britânico havia sido fechado. Deu no noticiário. Até tu, Brutus?  A pamonha aqui largou o que estava fazendo para ficar colada em frente à tevê. Depois morri de vergonha. Além de gostar de privacidade, os ingleses adoram tradição. A ‘abertura’ do Parlamento é apenas mais um ritual do calendário britânico.
 
 

 


 

 

 


Dona Rainha Elizabeth, com sua coroa cintilante, sai de seu palácio real a bordo de uma relíquia sobre rodas, puxada pelos cavalos mais majestosos e lustrosos de todo o reino. Ela segue escoltada pela cavalaria, acenando (raramente) para os súditos e turistas pelas avenidas da capital, até chegar a Westminster. A ‘abertura do Estado’ acontece não só no começo do ano parlamentar, mas também logo depois que um novo primeiro-ministro assume o cargo. É a única ocasião em que os três poderes constitucionais (soberano + casa dos lordes + casa dos comuns) se reúnem. Para quem está se perguntando onde fica o primeiro-ministro nesta festa, uma explicação: ele é, antes de tudo, um parlamentar, portanto, também está na lista de convidados.


                    

A Rainha chega ao Parlamento e entra pela porta dos soberanos, sim existe isso. Depois ela é levada à ‘sala dos robes’ (também não estou inventando), onde veste um manto real. De lá, caminha até a Galeria Real (tá ficando repetitivo), onde seiscentos convidados a esperam. Então, o ‘Black Rod’, que é um funcionário sênior da Casa dos Lordes (uma espécie de senado) é enviado para convocar os parlamentares da ‘Casa dos Comuns’ (o equivalente à Câmara Federal). Chegando lá, os parlamentares batem a porta na cara do emissário. Uma prática, aparentemente malcriada, que existe desde a Guerra Civil (século XVII), simbolizando a independência da Casa dos Comuns da Monarquia. O ‘Black Rod’ usa um cetro para bater na porta três vezes. Se olhar bem, dá para ver o estrago que essa tradição fez na madeira da porta ao longo dos anos.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os ‘Comuns’ acompanham o ‘Black Rod’ até a ‘Câmara dos Lordes’ e, de pé, escutam o discurso da Rainha. Ela confortavelmente (vai ver que não) assentada em seu trono real.
 
 
 
 
 
 
 

 


O texto, escrito pelo governo, contém as propostas políticas para o legislativo no ano que se inicia. É uma cerimônia lindíssima, rica em simbolismos, pompa e circunstância. Um ritual afinado com o passar dos anos.


 

 
 




Quase caí pra trás quando vi pela primeira vez uma sessão do Parlamento Britânico. Um parlamentar fala e é aplaudido pelos colegas, que mexem a cabeça em sinal de aprovação. Enquanto isso, do outro lado da mesa, a oposição VAIA! Isso mesmo, eles soltam umas risadas forçadas, de quem quer ridicularizar o oponente e vaiam. Cá prá nós, é meio ridículo. Parece uma pantomima, mas faz parte do show deles. Qualquer um pode visitar o Parlamento, mas assisti à cena no canal que transmite as sessões, como numa TV Senado. Fiquei esperando o momento em que eles iriam sair no tapa. Mas não tem agressão física e nem outras baixarias pessoais. O que custei um pouco a perceber, é que havia sim conflito, mas de ideias, de posições políticas. O ‘telequete’ tem suas regras. As mães alheias ficam de fora e não se ameaça a integrigade física de ninguém. Egos podem sair feridos, mas não tem olho roxo.

 

Os ingleses aprendem cedo a participar da vida pública. O dia nas escolas começa com uma assembléia. As crianças se reunem num salão ou no auditório da escola. Nestes encontros, muitas vezes um aluno é convidado a falar para a escola inteira. Pode ser para mostrar uma medalha que ganhou no futebol, ou simplesmente porque tem um recado a dar. Adoro o modo como as crianças desta ilha se expressam. Elas são articuladas, são ensinadas desde pequenas a defender um ponto de vista e a argumentar. Faz parte da tradição de debate e de expressão desta cultura.

 

O exemplo mais batido deste caso de amor com a liberdade de expressão é o ‘Speakers' Corner’ , a esquina da oratória no Hyde Park, bem no centro de Londres. Ainda hoje em tempos internéticos, o sujeito, ou a sujeita, que acha que tem uma mensagem que vale ser compartilhada com o mundo, pega sua escadinha, sobe nos degraus e solta o verbo. Religião e política são os temas mais populares, como era de se esperar. O interessante é que o lugar escolhido foi um dia o palco de execuções públicas por enforcamento.

 

Tem gente que acredita que se pode falar o que quiser no Hyde Park. O ‘Speakers’ Corner’ seria uma espécie de ‘pique’, aquele canto que no pega-pega de criança oferece uma imunidade temporária. Mas não é bem assim. O teor do discurso não pode ser ilegal, incitar ao ódio ou à violência e, se ofender alguém diretamente, o orador é passível de processo de difamação, como em qualquer outro lugar. A tradição começou no século XIX, depois de uma revolta popular contra a proibição da abertura do comércio aos domingos, o único dia em que os trabalhadores podiam ir às compras. O resultado dos protestos foi que os cidadãos ganharam o direito de se pronunciarem no Hyde Park. Desde então é o lugar para o debate público, discursos, protestos e manifestações. Por lá passaram Karl Marx, Vladimir Lenin e o grande irmão George Orwell. Qualquer um pode usar o espaço para se expressar.

 



 




Já faz uns anos, mas me lembro de ler todas as manhãs na sessão carta do leitor do Metro News, uma discussão sobre quem eram os melhores trabalhadores, os Oompa Loompa, da Fantástica Fábrica de Chocolate ou os irritantes Munchkins, do Mágico de Oz. Esse debate e outros, como quem levaria a melhor numa briga entre o Capitão América e o Super Homem, durou semanas. Era ridículo, mas os argumentos eram engraçadíssimos e bem escritos. Bem mais interessantes do que o mais recente casamento de Katie Price (quem?) ou a cara amarrada de Victoria Beckham.
 



 

 

 

 



 

 

 


Logo que vim morar na Inglaterra, fiz um curso de inglês. A escola organizava eventos e excursões. A explicação oficial era que essas atividades ofereceriam ao aluno uma oportunidade de imersão na cultura local. Seja como for, eram uma baita isca para quem não estava assim tão interessado numa sala de aula.


 

 
 Cheguei a ir a um ‘pub quiz’, que é quase uma instituição britânica. Cada mesa organiza seu time. Todo mundo paga um pouco para tomar parte no jogo. O dono do bar lê as perguntas, como num jogo de Máster. A mesa vencedora recebe o bolão e gasta tudo em cerveja. Da última vez em que fui a um destes eventos, o organizador ameaçou confiscar os celulares dos participantes, antes do jogo começar. Todo mundo se fingiu de morto; ele percebeu que perderia fregueses e se deu por vencido. O ‘pub quiz’ virou um campeonato do dedo mais rápido do oeste, de quem conseguia achar a resposta no google em menos tempo e sem dar muita bandeira.
 
Mas voltando ao tempo de estudante. Fui com meus colegas a um pub participar do ‘jogo do balão de ar quente’. Funciona assim: você pode escolher quem quer ser, qualquer personagem que quiser incorporar –  tem sempre um que apela e escolhe ser um cientista, que está prestes a desvendar a cura definitiva para o câncer.
 
O balão está pesado e com problemas. Um dos passageiros vai ter que ser sacrificado, senão todos vão morrer. Cada participante tem um tempo para fazer seu discurso e defender a própria pele. “Eu mereço viver porque...” Se os argumentos não colarem, tchauzinho. Achei a brincadeira espetacular mas fiquei passada em pensar como é que alguém sai de casa para beber e, voluntariamente, toma parte num jogo destes. O cientista salvador da pátria foi o primeiro a se espatifar no chão. Não sabia juntar sujeito com predicado. Coitado. Um a um os competidores foram saindo do jogo. Se me lembro bem, ganhou o espertinho, que prometeu pagar uma rodada para a turma. Ah, o apelo irresistível de Baco...
 
Ser imigrante nem sempre é um passeio no parque. Quando a gente se depara com as diferenças e com aquilo que não compreendemos, dá uma saudade enorme de casa. Nosso país de origem passa a ser o melhor e mais desejado lugar do mundo. Mesmo quando não é bom, melhor escolher um diabo conhecido do que um estranho. Tem a fase das comparações e a do deslumbramento. Tudo ao mesmo tempo, sem muita ordem. Apesar da confusão interna, viver no exterior é também uma oportunidade enorme de aprendizado e um exercício de adaptação.
 
 
Não sei o que tem lá na frente e não acredito mais em bolas de cristal. Gosto de pensar que, se algum dia for morar em outro país, levarei comigo o amor dos ingleses pelo debate, sem medo do confronto de ideias e sem sair chutando o pau da barraca. Irá na minha bagagem também a memória dos sons, que entravam sem convite pela minha janela, num país muito mais ensolarado.  
 
 
 
 
 

 
 

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