sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Questão Moral



Na estação Liverpool Street em Londres, uma estátua de bronze chama atenção. A cena retratada é doce: cinco crianças com expressões de deslumbramento nos rostos. Uma delas carrega um ursinho de pelúcia. Mas a história por trás da obra de arte é muito dura. Durante nove meses entre 1938 e 39, cerca de dez mil crianças judias foram mandadas sozinhas (sem os pais) para esta Ilha. Chegavam num trem apelidado de ‘Kindertransport’ (transporte de crianças). A maioria vinha de países como Alemanha, Áustria e Polônia. Elas seriam hospedadas em casas de famílias inglesas durante a Segunda Guerra Mundial. As crianças foram recebidas num clima de ambiguidade. O jornal Daily Mail (que continua conservador até hoje) denunciou, na ocasião, o que considerava um grande erro histórico. Afinal, segundo a publicação, este era um país cristão e o problema dos judeus não dizia respeito às pessoas da Grã-Bretanha.



Kindertransport Liverpool St Station




Esta postura “ema-ema-ema, cada um com seu problema” prevalece em grande parte da sociedade civil deste país e em tantos outros países europeus, no que diz respeito ao êxodo maciço de pessoas, principalmente da Síria, norte da África e Afeganistão.  A questão é que três em cada quatro eleitores britânicos acham que esse país já recebe estrangeiros demais. Semana passada saíram os números da imigração nesta Ilha. As estatísticas mostram que entrou mais gente do que saiu: a diferença entre os que deixaram o país e os que imigraram para cá é de 318 mil no último ano. Apenas dois mil a menos que em 2005, quando o Reino Unido abriu suas portas para oito novos membros da Comunidade Europeia. Só para colocar estes números em perspectiva: o Reino Unido (Inglaterra, País de Gales e Escócia) tem uma área em quilômetros quadrados que é menos do que a metade do estado de Minas Gerais.


O ponto é que a questão da imigração e a dos refugiados são percebidas pela maioria da população como a mesma coisa. O tema da imigração é vasto, dá muito pano para manga em vários posts. Para que este não fique longo demais, resolvi tentar me concentrar na questão dos refugiados. Os jornais usam as palavras ‘imigrantes’ e ‘refugiados’ como se as duas coisas fossem sinônimas, o que não são.




Em 1951, depois da Segunda Guerra Mundial, uma convenção criou o Estatuto dos Refugiados. O documento da ONU recebeu uma emenda em 1967, quando aumentou os direitos daqueles que procuram asilo em outros países. Cento e quarenta e oito países, incluindo o Brasil, são signatários dos dois documentos. Os Estados Unidos não concordaram com a reforma de 1967, para eles vale o que está escrito apenas na versão inicial.
 


Refugiado, ao contrário do imigrante, foge de seu país de origem para tentar escapar da guerra ou perseguições que colocam sua vida em risco (sejam elas religiosas, raciais ou políticas). O risco tem que ser comprovado. E, uma vez admitido, não pode ser mandado de volta para seu país.








O drama dos refugiados sírios, retratado pelo fotojornalista Valnei Nunes*




Os sírios teoricamente têm o status de refugiados, porque a guerra civil em seu país, que já dura quatro anos, matou pelo menos 300 mil pessoas. Desabrigou mais de 11 milhões de cidadãos. Quatro milhões deles já deixaram o país e têm uma existência de pobreza e falta de perspectiva de futuro em campos espalhados nos vizinhos, Líbano, Turquia e Jordânia.



Os números são alarmantes, na mesma proporção em que são desprovidos de alma. Como se a matemática tornasse banal o desespero e o medo de quem vive o horror da guerra. Estamos acostumando nossos olhares a ver aquelas pessoas como pobres vítimas da miséria, nos esquecendo de que um dia cada um deles teve uma vida de normalidade. Que saiam para o trabalho. Que suas crianças frequentavam escolas. E, que principalmente agora tudo é incerteza.





Campo de refugiados - Foto: Valnei Nunes


Há também os que se arriscam pelo Mediterrâneo, na esperança de reconstruírem suas vidas em solo europeu. A crise ficou mais evidenciada no início da primavera e no verão, quando o tempo menos inclemente favorece a travessia. Toda semana, assistimos na tevê histórias de naufrágios e pessoas se afogando em proporções bíblicas. Vimos equipes de resgates usando máscaras nos rostos para suportar o mau cheiro da pobreza e da degradação humana.


Ninguém é imune a estas imagens. Mas precisou de uma ainda mais forte para que líderes como o primeiro-ministro David Cameron recuassem em seus discursos linha dura: a foto do menininho sírio de três anos, que morreu afogado junto com sua mãe e irmão ao tentar chegar na Grécia. Até então, o governo britânico vinha dizendo que não iria receber sua cota dos refugiados que chegam aos milhares e se espalham pela Europa. Ontem virou o disco, disse que este país vai cumprir seu papel de responsabilidade na crise humanitária. Anunciou  hoje que vai receber milhares de refugiados sírios. Quantos, ainda não se sabe ao certo.


O discurso oficial que vem sido repetido exaustivamente nos últimos dias na mídia é que este país manda mais dinheiro do que todos os outros membros da Comunidade Europeia para manter os campos de refugiados sírios. Eles entendem que receber os cidadãos  expulsos pela guerra não resolve o problema. Não gostam da posição adotada pela chanceler alemã Angela Merkel de abrir as portas de seu país aos refugiados. Segundo o governo de David Cameron, isto só incentiva outros refugiados a optar pelo mesmo caminho e assim agravar a crise em solo europeu.




Refugiados na Turquia - Foto: Valnei Nunes




 Resolvi não usar neste post a imagem tão repetida nos últimos dias de Aylan Kurdi com o rostinho enfiado na areia da praia, ou a de seu corpo sendo carregado por um policial. As imagens têm poder, mas nesta era midiática, os reflexos duram apenas o tempo de um novo viral. Ouvindo o rádio hoje, fiquei comovida ao saber que grupos de pessoas aqui na Ilha estão se organizando para receber refugiados em suas casas. Por mais que este gesto seja uma gota no oceano do miserê humano que estamos presenciando, ele restaura um caquinho de fé na capacidade humana de se compadecer e de ser capaz de se colocar de fato no lugar do outro. Que os trilhos da Europa se abram para outros ‘Kindertransport’. 
 
 
 
*Valnei Nunes esteve num campo de refugiados sírios na fronteira com a Turquia e gentilmente cedeu algumas de suas fotos para este post. Para conhecer mais sobre seu trabalho: http://www.valneinunes.com/

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